Wednesday, April 24, 2013

Gentileza e caridade em tempos de fome

Acho que estou ficando muito sentimental. Hoje li um relato e quase, quase mesmo, chorei. Tratava-se da história de uma garota de 9 anos, que fugiu com a mãe da Coreia do Norte para a China. Conta a garota que, com oito anos, estando só com a irmã mais nova em casa, estavam prestes a comer a parca ração de mingau de milho, única refeição do dia, quando bateram à porta. Não era um dos pais, como ela pensava, mas outra garota de oito anos com seu irmão de três. Veio pedir comida emprestada, pois seus pais foram três dias antes a uma cidade vizinha em busca de comida e ainda não haviam retornado, e ela e o irmão não comiam há dois dias, afirmando que tão logo seus pais retornassem restituiriam a comida cedida. Após uns instantes de hesitação a nossa protagonista negou-se, fechou a porta e ignorou as subsequentes batidas, atitude que até hoje causa nela profundas dores morais.
Penso nos bons modos da visitante importuna, que com fome de dois dias ainda vinha pedir emprestado, comprometendo-se a devolver. Quem de nós não teria, em tais circunstâncias, tomado à força o sustento para si e o irmão? E a criança pediu emprestado, foi polida e respeitadora, mesmo faminta há dias. Não se sabe o que foi feito dela ou do irmão, mas sua memória gentil assombra a protagonista e agora a mim.
Poucos de nós experimentaram a fome forçada, contra a qual não há como lutar. Minha última vez foi também aos oito anos. Desde então a Providência tem sido generosa, não obstante os sustos, e nada faltou para mim e minha família. Mesmo assim entendo o que é estar só em casa, virtualmente impotente e com fome, e estou determinado a não permitir que a minha filha, tão menina como a protagonista e sua visitante, aprenda essa lição.
Penso também no que faria caso eu fosse visitado nesses termos. Procuro, sem muito sucesso, crer que seria melhor anfitrião e que dividiria meu mingau, mas tristemente a ilusão se desfaz ao lembrar que hoje estou em uma situação bem mais favorável que a anfitriã, e mesmo assim ajo com menos caridade, ainda que estampe no rosto uma "gentileza amarela" que não engana nem a mim, quanto mais ao irmão que à porta me pede auxílio. Não obstante desejo boa sorte e que D'us o abençoe, mesmo sabendo que Ele pode abençoar-nos com um alimento dado por meu intermédio.
Não quero perder minha alma, agindo como um fotógrafo que registra o sofrimento mas não o toma para si, preferindo fotografar o moribundo a ajudá-lo. Talvez, talvez, esse incômodo que gerou estas linhas seja um sinal de mudança, de redenção. Talvez esse sentimento e essa lembrança não caiam no esquecimento da rotina dos dias nem sejam soterrados pelos meus problemas mundanos, e eu me torne uma pessoa melhor. Mas, ao menos enquanto não esqueço, meu pensamento está com a visitante gentil.